A discussão ganhou força no momento em que a Corte se tornou o foro competente para as investigações envolvendo os supostos mandantes dos homicídios da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
A suposta participação do deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ),
apontado pela Polícia Federal como um dos responsáveis, fez com que o
caso fosse alçado ao STF, que tem a atribuição de julgar parlamentares
federais. Na época do crime, no entanto, ele era vereador, e as
investigações apontam que o crime foi cometido em função de disputas
fundiárias, o que não teria relação com o atual mandato de Brazão.
Quando restringiu o foro privilegiado, o Supremo decidiu que deveriam
tramitar na Corte somente casos de deputados e senadores que tivessem
cometido crimes durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo.
Antes, qualquer inquérito ou ação penal contra parlamentares, mesmo
anteriores ao mandato, eram transferidas para o tribunal.
No despacho em que abriu caminho para uma nova discussão sobre os
critérios para concessão de foro privilegiado, Gilmar afirma que é
preciso "recalibrar os contornos" do mecanismo, destinado a pessoas com
cargos públicos e mandatos eletivos. O GLOBO apurou que, além do decano,
outros ministros do Supremo já vinham defendendo que o tema fosse
revisitado. Houve um acordo interno para que a discussão fosse pautada.
Reservadamente, um magistrado diz que é preciso fazer ajustes e que
esse tipo de reanálise faz parte de uma evolução "natural" da
jurisprudência da Corte, já que os desafios e situações a serem
apreciadas vão surgindo no dia-a-dia.
Os julgamentos no plenário virtual têm duração de uma semana e ocorrem
em um formato em que os ministros apresentam os votos, mas não há debate
entre eles. Existe a possibilidade de um magistrado pedir destaque, o
que leva a ação para o plenário físico.
No tribunal, a expectativa é que eventual rediscussão sobre o alcance
do foro não implique em uma "volta ao passado", retornando ao formato
que valia até 2018. A ideia é chegar a uma maior definição sobre casos
específicos, detalhar melhor essas hipóteses e, assim, blindar o
tribunal de críticas que poderiam ser feitas sobre uma insegurança
jurídica e evitar contradições por parte do tribunal.
A restrição do foro privilegiado em 2018 foi motivada por uma questão
de ordem apresentada pelo atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso,
em uma ação penal. No julgamento, o posicionamento do ministro,
favorável à restrição, foi seguido pelos ministros Celso de Mello e Rosa
Weber, hoje aposentados, além de Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luiz Fux.
Barroso, na época, apontava para uma sobrecarga do Supremo com ações
penais envolvendo pessoas detentoras de foro, e criticava idas e vindas
que levavam a prescrições de penas.
No julgamento, que se arrastou ao longo de meses, uma outra corrente
reuniu ministros que achavam que a restrição deveria ser menor.
Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski (hoje ministro da Justiça)
reconheciam a competência do STF para julgamento de parlamentares
federais nas infrações penais comuns, após a diplomação,
independentemente de ligadas ou não ao exercício do mandato. Dias
Toffoli e Gilmar Mendes, por outro lado, defenderam que a restrição do
foro por prerrogativa de função seria incompatível com a Constituição.
“Reconfigurar o alcance”
O caso que será analisado no plenário virtual é um habeas corpus movido
pela defesa do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), réu em uma ação
penal na Justiça Federal do Distrito Federal por supostamente, enquanto
foi deputado federal, ter ordenado que servidores de seu gabinete
devolvessem 5% de seus salários para o PSC, então seu partido. Ele é réu
pelo crime de concussão, mas a defesa argumenta que o caso deve ficar
no STF porque desde 2007 ele exerce cargos com foro privilegiado, antes
de ser senador. O parlamentar nega os crimes.
"No caso dos autos, a tese trazida a debate não apenas é relevante,
como também pode reconfigurar o alcance de um instituto que é essencial
para assegurar o livre exercício de cargos públicos e mandatos eletivos,
garantindo autonomia aos seus titulares. É caso, portanto, de
julgamento pelo plenário, até mesmo para estabilizar a interpretação da
Constituição sobre a matéria", disse Gilmar na decisão dada no último
dia 13.
Para Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional e Filosofia do
Direito na FGV SP, o país tem um problema "muito mal resolvido" com o
foro privilegiado, uma vez que a discussão fica a reboque da conjuntura
política e social.
– Quando houve o julgamento do mensalão, e havia punição à corrupção,
todos os réus queriam fugir do STF. Os advogados diziam que era um
absurdo, que não havia duplo grau de jurisdição, e que isso era uma
aberração. Alguns anos depois, com o desenvolvimento da Lava-Jato, os
partidários do combate judicial à corrupção passaram a dizer que o foro
privilegiado era sinônimo de impunidade, que ninguém deveria ser julgado
pelo STF e que o instituto deveria ser extinto – pontua o jurista.
Flávio Bolsonaro, Lava-Jato e 8 de janeiro
Em decisões tomadas recentemente, o Supremo dá mostras de que, de fato,
o tema não está pacificado. Um dos gargalos se dá no debate em torno de
troca de casas legislativas estaduais para federais. No julgamento de
2018, não houve definição sobre esse aspecto, e ao longo dos anos a
Corte se deparou com alguns casos. Um deles, analisado em 2021, envolvia
o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). A Segunda Turma manteve o foro
privilegiado concedido a Flávio Bolsonaro no caso das chamadas
"rachadinhas" investigadas no antigo gabinete do parlamentar na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). A denúncia contra o
parlamentar foi posteriormente arquivada pela Justiça.
Em abril de 2023, Lewandowski ordenou que as alegações feitas pelo
advogado Rodrigo Tacla Duran contra o ex-juiz da Operação Lava-Jato e
senador Sergio Moro (União-PR) fossem encaminhadas para o STF em vez de
tramitarem na 13ª Vara Federal de Curitiba. O processo em questão diz
respeito a uma alegada conduta de Moro enquanto ocupava a posição de
magistrado, e não durante seu mandato parlamentar.
A discussão do foro privilegiado no Supremo também permeia os
julgamentos dos envolvidos nos ataques golpistas de 8 de janeiro,
relatados por Moraes. Embora a maioria dos integrantes da Corte defenda
que os casos devem tramitar no STF porque têm conexão com apurações
abertas para investigar autoridades com foro na Corte, os ministros
André Mendonça e Nunes Marques entendem que esses processos deveriam
tramitar na primeira instância.
Para Mendonça, manter os processos no Supremo contraria o que foi
decidido que o foro seria restrito e significa "reduzir a competência
originária criminal do Supremo, até mesmo no sentido de melhor
viabilizar os julgamentos realmente cabíveis no Tribunal e de se
preservar a excepcionalidade da prerrogativa de foro".